O tempo da insurreição

21 de março 2023 - 21:49

Com o golpe do artigo 49.3, eis-nos chegados ao momento da verdade da batalha de classe que começou há quase dois meses. O momento que revela o seu significado profundo e decide o seu resultado. Editorial da revista Contretemps.

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Joseph BEAUME – Attaque de l’Hôtel de Ville de Paris, le 28 juillet 1830 / Wikimedia Commons.
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Para o poder, a questão é simples: o golpe de força, sinal de uma nova escalada repressiva, revela o seu isolamento. A sua reforma foi imediatamente recebida com uma rejeição popular maciça. Apesar dos pequenos arranjos com uma direita tradicional que se encontra em processo de desagregação, ele tornou-se minoritário na Assembleia Nacional. Macron fez desta reforma o eixo do seu segundo mandato, a prova irrefutável do seu radicalismo neoliberal, da sua determinação em quebrar a resistência de um povo que ele sabe ser "refratário". Ela tornou-se a prova gritante do carácter estruturalmente minoritário deste bloco social que ele encarna na perfeição, no seu papel de funcionário insolente de uma burguesia enfurecida, embriagada de vingança pelas concessões que foi forçada a fazer no passado, herdeira digna dos Versaillais e do Comité des forges[1].

Mas o golpe de força é também o momento da verdade para o seu verdadeiro adversário, a mobilização de massas conduzida pelo movimento sindical e pela esquerda política. Sem dúvida que ela marcou pontos: manifestações recorde, uma implantação no território sem paralelo durante o último meio século, perseverança, um espírito unitário. Manifestações assentes no carácter ultra-maioritário da rejeição da reforma. Importantes setores sociais regressaram à ação coletiva, para além do perímetro habitual da esquerda e do sindicalismo. A mobilização de rua foi repercutida nos órgãos parlamentares, permitindo ganhar tempo, afinando os argumentos e dando maior visibilidade à oposição popular.

Foi assim construída uma relação de forças, cujo efeito até foi sentido nas fileiras da direita burguesa. Encurralado, o Governo não tinha outra opção senão recorrer à arma última oferecida por uma constituição inteiramente concebida para amordaçar os meios de expressão da vontade popular, mesmo nos procedimentos que outrora tinham sido o orgulho das democracias parlamentares.

Esta autoritária fuga para a frente está repleta de perigos.

Antes de mais, coloca o movimento social contra a parede. Pois embora seja verdade que o movimento conseguiu demonstrar a sua legitimidade maioritária, também se revelou incapaz de conseguir a retirada de uma reforma que foi esmagadoramente rejeitada. A estratégia, impulsionada pelo CFDT, de exercer pressão sobre o Governo e o Parlamento mostrou os seus limites: o argumento democrático é impotente face a um poder brutal e determinado. A questão da temporalidade tem aqui um valor estratégico.

Embora reconhecendo a importância crucial de manter um quadro unitário, podemos pensar que a decisão da intersindical[2] de se alinhar com o calendário parlamentar impediu a "escalada em força", uma dimensão decisiva de qualquer movimento vitorioso. Por exemplo, era sem dúvida necessário dar prioridade, pelo menos inicialmente, às manifestações de massas, mas porquê estabelecer um intervalo de doze dias entre o primeiro e o segundo dia de mobilização em janeiro? Seria necessário, quando foi anunciada a utilização do 49.3[3], a derradeira "linha vermelha" aos olhos até das forças mais "responsáveis" da intersindical, e quando, de forma totalmente previsível, a raiva se apoderou do país, estabelecer um intervalo de uma semana?

A experiência do movimento de 2010 contra a anterior contra-reforma de pensões  tinha mostrado que na era neoliberal, a multiplicação de "jornadas de luta" pontuais, por mais bem sucedidos que sejam em termos de participação, não é suficiente para fazer um Governo ceder. Para isso, é necessário mais, em particular uma ação grevista prolongada, que é a que pode efetivamente paralisar um país.

No entanto, temos de ser claros: numa situação de enfraquecimento do movimento laboral, desconcentração das atividades produtivas e fortes constrangimentos num mundo de trabalho em grande parte atomizado, tal ação é uma opção difícil, especialmente no setor privado. O próprio setor público viu o seu raio de ação reduzido e a sua coesão perturbada em resultado das privatizações, restruturações e "aberturas à concorrência".

O seu poder de bloqueio das atividades económicas já não é o que era, tal como o peso do sindicalismo no seu seio. É ilusório pensar que um simples apelo a uma "greve geral" e à "determinação" bastará para encontrar uma estratégia, e é inútil gritar "traição" se ela não acontecer. Para os setores mais organizados, a experiência recente de greves reconduzíveis longas, mas sem sucesso, deixou a amarga memória do relativo isolamento e das pesadas perdas financeiras. Nem as greves espaçadas nem a "greve por procuração" são opções vencedoras.

Ao traçar o 49.3, o cálculo do Governo é de um cinismo absoluto: depois de ter apostado no desgaste da mobilização enquadrada pela intersindical, está a apostar numa combinação da política do facto consumado e do teste de resistência da reação vinda "de baixo", sem dúvida eruptiva, mas condenada à fragmentação. A sua ala "responsável" procurará porventura uma saída "suave", enquanto que os mais radicais ficarão presos à lógica das ações estrondosas e minoritárias. Será então tratada como deve ser, ou seja, da mesma forma que os Coletes Amarelos.

Este cálculo acarreta sérios riscos. O menos grave, para os governantes, é o das moções de censura. O seu sucesso depende da reunião de quase metade dos deputados da direita dos Republicanos (LR), uma hipótese altamente improvável, e da qual seria perfeitamente irresponsável a oposição popular apostar. Mais do que nunca, o centro de gravidade da batalha está na ação de massas.

O outro risco é, de facto, tão assumido pelo Governo que se torna o seu objetivo quase declarado. A impotência esperada do movimento social e da esquerda face a uma "reforma" maciçamente vaiada, coloca a extrema-direita numa posição forte para se aproveitar da situação. À coca desde o início da batalha, a União Nacional (RN) sabe que a combinação explosiva da exasperação social e o fracasso da ação coletiva pode dar-lhe o ímpeto capaz de a levar ao poder.

Isto confirma mais uma vez, à escala de uma grande crise social e política, a cumplicidade objetiva do macronismo e do lepenismo. Cada um precisa do outro para estruturar um campo político que permita ao primeiro, expressão de um bloco burguês minoritário, no fim ganhar nas urnas, e ao segundo, expressão abusiva da cólera popular, colocar-se como a única oposição capaz de o derrotar.

Só que, desta vez, ouvem-se vozes, inclusive no seio do bloco burguês, a dizer que, nas condições aqui criadas, a chantagem deixará de funcionar. Um macronismo certamente ferido mas, no final, "vitorioso" face à mobilização social é o caminho real para uma futura vitória da extrema-direita. Tal perspetiva, se não encantar as frações burguesas dominantes, não é de forma alguma suscetível de as preocupar. Neste cenário, a Itália de Meloni anuncia o futuro da França pós-Macron.

O outro risco, ou mais precisamente o único risco real para os seus instigadores, é ver este cálculo frustrado pelos seus próprios efeitos. Pois o golpe de força, vindo de um poder minoritário, dá um impulso a uma mobilização que estava à procura do seu lugar. Por todo o país, multiplicam-se as ações que indicam a passagem a uma nova etapa: concentrações espontâneas, ressurgimento e endurecimento em setores já empenhados em greves reconduzíveis, a passagem à ação de novos setores, ações multiformes de bloqueio, desenlace tumultuoso de algumas manifestações. A expansão do domínio da luta está à vista.

E aí, precisamente, reside a esperança de vencer: numa nova configuração de mobilização popular à altura do desafio que lhe é lançado por este poder cínico e violento. Uma mobilização capaz, desta vez para valer, de subir um degrau, combinando todas as formas de ação que permitem à força popular exprimir-se e utilizar o seu poder. Formas "clássicas" ou não, "radicais" ou "responsáveis", locais ou coordenadas em (necessários) momentos fortes nacionais, trata-se de demonstrar a sua complementaridade, preservando simultaneamente o carácter unitário e massivo da mobilização global, que tem feito a sua força até agora.

O precedente do CPE[4] mostra que é possível obter a retirada de uma lei mesmo após a sua validação parlamentar. Mas o desafio atual é de uma escala diferente. Estar à altura da tarefa implica a transformação do próprio movimento através de um duplo alargamento: do seu repertório de ação e dos seus objetivos. Só uma insurreição social e democrática é capaz de responder à provocação das autoridades. A retirada da reforma das pensões continua a ser a questão central, e é evidente que ganhar neste objetivo abalaria irreversivelmente o poder atual. Mas é precisamente a questão de acabar com Macron e o seu mundo que está em jogo. Esta questão não é nada mais nada menos do que a de uma alternativa política digna desse nome.

Insurreição e alternativas sociais e democráticas estão agora na ordem do dia.


Editorial da revista Contretemps, publicado a 20 de março de 2023. Tradzido por Luís Branco para o Esquerda.net

Notas:

  1. ^ NT: "Versaillais" refere-se às tropas do governo de Thiers instalado em Versailles que esmagaram a Comuna de Paris. O "Comité des forges" era a organização patronal da indústria siderúrgica francesa de 1864 a 1940.
  2. ^ NT: A intersindical inclui as centrais sindicais CGT, CFDT, FO, CFE/CGC, CFTC, UNSA, SUD/Solidaires e FSU e as organizações estudantis e juvenis UNEF, VL, FAGE, FiDL e MNL.
  3. ^ NT: O artigo 49.3 da Constituição francesa permite ao Governo aprovar uma sei sem a aprovação do Parlamento. Os deputados apenas podem impedir a aplicação da lei se nas 24 horas seguintes apresentarem uma moção de censura e se esta for aprovada pela maioria absoluta da Assembleia.
  4. ^ NT: CPE, iniciais de Contrato Primeiro Emprego, foi uma das bandeiras do governo de direita na presidência de Jacques Chirac em 2006 e permitia o despedimento sem justificação nos dois primeiros anos de trabalho dos jovens até 26 anos. As manifestações de rua foram as maiores das últimas décadas, a par de ocupações de escolas durante várias semanas, que fizeram o governo de Dominique de Villepin recuar.