Filhos de Ramsés: guiados pelo olhar do "feiticeiro" Clément Cogitoire

16 de março 2023 - 15:50

Em estreia esta quinta-feira nas salas portuguesas, o filme desenrola-se num emaranhado cosmopolita onde o negócio do corpo se confunde com o tráfico e a contrafação e a religião com o charlatanismo.

porPaulo Portugal

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Karim Leklou em "Filhos de Ramsés". Imagem Leopardo Filmes

“O inferno está vazio! Todos os demónios estão aqui!” A frase maldita, proferida entre pai e filho, vem impregnada de um misticismo que desafia a razão e o tempo. É neste ambiente inquietante que o promissor cineasta francês Clément Cogitoire intromete a ação do insondável Filhos de Ramsés, a partir desta semana nas salas. Isto depois de já ter recebido o prémio de Realização no passado festival LEFFEST, em novembro passado, bem como a sua consagração na Semana da Crítica em Cannes. O cineasta foi revelado na mesma secção paralela, em 2015, com o filme de estreia Ni le Ciel, ni la Terre, igualmente exibido, em 2022, no festival dirigido por Paulo Branco.

O título original Goutte d’Or (gota de ouro) refere-se ao quartier parisiense, em pleno 18º bairro, junto à Gare du Nord, separada pelo boulevard Barbés e a Porte de la Chapelle e de onde vem o realizador. O filme desenrola-se nesse emaranhado cosmopolita de comunidades magrebinas, africanas e asiáticas, além de parisienses e turistas, apelando a uma certa herança comunitária, onde o negócio do corpo se confunde com o tráfico e a contrafação e a religião com o charlatanismo. 

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Ramsés é um médium que conseguiu cimentar a sua credibilidade e preferência a outros profetas, sacerdotes e demais marabouts, graças aos seus dotes de vidente. Chamam-lhe feiticeiro, pela tremenda convicção que emana do seu olhar e a sugestão em evocar as almas já partiram, submetendo um muito credível transe visual a uma comunidade de fiéis capaz de lhe retribuir as suas esperanças, bem como as notas de três dígitos. Tudo vai bem até a sua estabilidade ser ameaçada pela entrada em cena – e, literalmente, em casa - de um grupo de perigosos adolescentes marroquinos sem eira nem beira. É dentro deste realismo social que o olhar de Ramsés (e também o próprio Cogitoire) nos recorda a ansiedade e as atribulações de Antonio, em Ladri di Biciclette, no clássico de 1948, de Vittorio De Sica. Ainda que Filhos de Ramsés siga um registo de thriller social com pé a num inferno metafísico e a cabeça perdida num nervosismo bairrista.

Sim, temos de falar dos olhos de Karim, pois são eles o foco permanente do filme, como uma alternativa câmara subjectiva de Cogitoire, tal é a intensidade do magnetismo da sua expressão visual. Como se através deles nos fosse permitido ver mais além, sentir algo indizível, pois é na mirada arrebatadora do actor Karim Leklou, talvez na melhor prestação masculina deste ano, que nos rendemos neste permanente jogo de espelhos ao mesmo tempo que nos ajuda a ver o lado mais realista do bairro ‘da gota de ouro’.

Se calhar, só assim se compreende esta travessia no caldeirão cosmopolita e multiétnico onde os adultos abandonam todas as esperanças - mesmo que conservem uma derradeira forma de redenção -, e as crianças aprendem a ser adultos durante a noite. É assim este imperativo cinematográfico sobre o trauma recalcado, devidamente enfeitiçado pelo olhar de Karim Leklou.

Paulo Portugal
Sobre o/a autor(a)

Paulo Portugal

Jornalista de cultura e cinema, autor do site insider.pt
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