De bradar aos céus

porMiguel Guedes

14 de março 2023 - 23:18
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Assistir à forma como a Igreja Católica reage à própria culpa é uma mácula que se anexa aos crimes. O provérbio arrasta-se e soma em vergonha alheia, mesmo por aqueles que, não sendo crentes, ainda acreditavam na fé dos homens.

Quando a emenda é pior do que o soneto. Assistir à forma como a Igreja Católica reage à própria culpa é uma mácula que se anexa aos crimes. O provérbio arrasta-se e soma em vergonha alheia, mesmo por aqueles que, não sendo crentes, ainda acreditavam na fé dos homens. E perder a fé nos homens é perder a fé última, o derradeiro rasgo de identidade que acrescenta matéria humana ao cartão de cidadão ou a um delegado de Deus. Não há nada que defenda aqueles que compactuam com o esconderijo mórbido onde alguns responsáveis máximos da Igreja se quiseram meter.

Após a entrega da listagem de cem padres suspeitos, a reacção da Conferência Episcopal Portuguesa foi de bradar aos céus. Total insensibilidade e indefinida perigosidade. Para muitos arautos da moral católica, um pedido de desculpas e um memorial às vítimas na Jornada Mundial da Juventude são um altar para o são e para o salvo. A grosseria da reacção não é um privilégio do inenarrável bispo de Beja, portador da reconhecida capacidade de sugerir que os padres possam ser perdoados, porque "esta maneira de abordar não é muito católica", já que "todos somos pecadores, todos temos falhas" e "o perdão é um novo nascimento". Distinta lata e um reflexo de como alguns não nasceram abençoados para abençoar ninguém.

A Igreja lida com os casos de pedofilia de uma forma avulsa e desconcertante. Autoflagela-se. Imoraliza-se, entrega-se à decadência. Abusa outra vez. O escândalo dos crimes de abuso sexual alimentaram uma conferência de imprensa infernal, onde surgiu o apelo a que as vítimas dessem a cara (as vítimas, Senhor!), onde se desvalorizou "uma lista de nomes sem outra caracterização", se negou que fosse uma "base sólida" porque "a gente não pode querer um círculo de um quadrado". Porque o que se passa na Igreja, para D. José Ornelas, "é um reflexo do país". Quando se percebe, tão evidentemente, que é produto da sua reacção ao espelho.

Felizmente para todos, há quem esteja ao lado das vítimas. Haja quem, como D. Américo Aguiar, o bispo Nuno Almeida ou os bispos de Angra e de Évora, não tenha hesitações. Os abusadores não constam de uma lista de nomes que caiu do céu. Quando o cardeal patriarca D. Manuel Clemente assume que as possíveis indemnizações seriam um insulto às vítimas, eis-nos chegados ao reino da piedade dos trocos. Quando afasta a suspensão dos padres acusados, assina de cruz um pacto de não agressão com os agressores. Transporta uma cruz nada católica.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 10 de março de 2023

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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