Não, não basta pedir desculpa

porAndré Julião

23 de fevereiro 2023 - 13:38
PARTILHAR

Não, não basta pedir desculpa, perdão, clamar por misericórdia ou insinuar uma “caça às bruxas”. É preciso que todos, sem exceção, respondam perante a justiça. E que os que forem condenados cumpram as penas respetivas até ao fim.

Era uma questão de tempo. Depois dos EUA, França, Espanha, Austrália e muitos outros países, eis que Portugal conhece também o seu Caso Spotlight. O horror entra nas casas dos portugueses à hora do Telejornal pelos ecrãs de TV e ecoa, sem limites, pelas redes sociais: validados 512 testemunhos pela comissão independente liderada por Pedro Strecht, foram identificados, no mínimo, 4.815 crianças vítimas de abusos sexuais de padres da Igreja Católica.

Um número bem maior do que aquele que levou ao comentário de mau gosto do Presidente Marcelo que indignou os portugueses. Um comentário, aliás, na linha do que tem pautado a relação da Igreja Católica com o poder, ao longo dos séculos, em Portugal: conivência, cumplicidade, jogos de influência e impunidade.

Nestes, pelo menos, 4.815 crimes hediondos há muitos cúmplices e lavar de mãos. Não são só os padres pedófilos e abusadores, são os bispos que encobriram os casos, é a estrutura da organização católica e uma parte da sociedade, uma faixa por ser ignorante, outra franja por recear a censura social e muitos até represálias.

Há muita gente que sai mal nesta fotografia, incluindo episódios de autoridades policiais que terão encoberto casos e desencorajado denunciantes. Mau demais.

No tal país de “matriz católica”

Este é o retrato de um país a que muitos gostam de chamar de “matriz católica”, onde existem normas excecionais que permitem a uma organização religiosa, entre outras benesses, ter uma universidade que não paga impostos. E onde os contribuintes são chamados a pagar milhões do seu bolso pela visita do seu representante máximo.

Certo é que será muito difícil provar a maioria destes abusos e muitos deles terão até já prescrito. Um pouco à imagem do que se passou nos julgamentos dos ex-elementos da PIDE no pós-25 de Abril. Infelizmente, em muitos casos, será a palavra da vítima contra a do agressor e, se não existirem mais testemunhas, o caso morrerá por ali e o pedófilo continuará em liberdade.

Mas, a Igreja Católica terá muita dificuldade em “lavar a cara” e remover a lama deste histórico escabroso. A sangria de fiéis, por certo, continuará ainda com mais força.

Depois do tiro no pé que foi a desvalorização do número de casos de abusos sexuais, os líderes da Igreja Católica portuguesa apressaram-se a pedir perdão, a multiplicar-se em desculpas e, ironia das ironias, a alertar para uma possível “caça às bruxas”. Quem diria. Muitos desses terão até, por certo, tido conhecimento dos casos bem antes da “bomba ter explodido”.

No enorme novelo de notícias que têm surgido de todo o país, há uma que se afigura particularmente alarmante: desses abusadores acusados, há cerca de uma centena que ainda está no ativo, isto é, dá missas, catequese, está em contato com os acólitos, com crianças.

Será fácil imaginar o que aconteceria se isto sucedesse, por exemplo, no seio da organização religiosa muçulmana, hindu ou budista.

Não basta mudar os padres de paróquia, como foi prática comum dos responsáveis eclesiásticos que iam tomando conhecimento dos abusos. Estes alegados criminosos e todos os que os encobriram têm de ser afastados, levados à justiça e julgados da mesma forma que seria um pedófilo numa escola, num clube de futebol ou noutra instituição qualquer.

Não, não basta pedir desculpa, perdão, clamar por misericórdia ou insinuar uma “caça às bruxas”. É preciso que todos, sem exceção, respondam perante a justiça. E que os que forem condenados cumpram as penas respetivas até ao fim. Não podemos, mais uma vez, ficar a pensar que, em Portugal, há quem esteja acima da lei.

André Julião
Sobre o/a autor(a)

André Julião

Jornalista
Termos relacionados: