Em luta pelo tempo perdido

porManuel Afonso

16 de janeiro 2023 - 23:42
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A mais-valia, diz-nos o autor do Capital, é aquela parcela de trabalho não paga pelos patrões. E acrescentava que, para esticar essa parcela, os donos do capital podem tentar aumentar a mais-valia absoluta (baixando salários) ou a relativa (aumentando as horas de trabalho sem pagar mais por isso).

Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede
Alberto Caeiro

Circula pelas redes um meme em que Newton, Einstein e Marx dissertam sobre a natureza do tempo. O primeiro assinala que o mesmo é absoluto; o segundo, que ele é relativo. Já o velho barbudo denuncia-o como uma conspiração da burguesia para roubar os trabalhadores. Humor à parte, e ignorando a tendência recorrente de caricaturar o marxismo como uma teoria da conspiração… a verdade é que há ali uma ponta de razão!

O tempo é, de facto, relativo. Disse-o Einstein, como já o assinala Santo Agostinho, vindo agora a física quântica atestá-lo. E o velho Marx, como era seu apanágio, viu a outra face da moeda: do outro lado do tempo, viu o trabalho e, a expropriá-lo, a mais-valia. A mais-valia relativa, este caso. Recapitulemos: a mais-valia, diz-nos o autor do Capital, é aquela parcela de trabalho não paga pelos patrões ― a parte da riqueza (gerada pelo trabalho) que sobra após o pagamento dos salários e outros gastos fixos dos patrões. E acrescentava que, para esticar essa parcela, os donos do capital podem tentar aumentar a mais-valia absoluta (baixando salários) ou a relativa (aumentando as horas de trabalho sem pagar mais por isso) ― os sacanas!

Ó tempo, volta para trás!

No nosso país, quem trabalha sabe bem do que falamos.

Não é preciso ler a Contribuição para a Crítica da Economia Política nem os Grundrisse. Antes fosse. Tempo de trabalho não-pago é o pão-nosso-de-cada-dia por milhares de empresas, país fora. É entrar mais cedo, é sair mais tarde, é trabalho suplementar não pago, é bancos de horas onde o tempo trabalhado desaparece sem deixar rasto… Quando os salários já são tão espremidos, é pelo tempo de trabalho que o patrão nos vai ao bolso. Isto da mais-valia relativa é um roubo absoluto!

A luta pelo tempo perdido é, assim, também uma frente de batalha pelo salário. E há pontos de apoio legais que legisladores desatentos ainda não eliminaram ― e que podemos usar a nosso favor.

Diz artigo 203 do Código de Trabalho que «Há tolerância de quinze minutos para transacções, operações ou outras tarefas começadas e não acabadas na hora estabelecida para o termo do período normal de trabalho diário, tendo tal tolerância carácter excepcional e devendo o acréscimo de trabalho ser pago ao perfazer quatro horas ou no termo do ano civil» (negrito meu).

Ora, nunca ouvi falar de uma só empresa onde isto se aplicasse. São milhares aquelas em que se entra um pouco mais cedo e se sai (às vezes, muito) mais tarde. São cinco ou dez minutos à entrada, outros tantos à saída.

Coisa pouca? Nem por isso. Vamos assumir que um trabalhador faz, em média, dez minutos a mais por dia (o que é costumeiro em tantos empregos). Ao final do ano, são cinco dias e meio de trabalho. Em tantos e tantos casos, contaríamos, na verdade, o dobro ou o triplo deste valor. Sendo que este tempo deveria ser pago como trabalho suplementar. Se multiplicarmos por milhares ou dezenas de milhares de casos, é um roubo de muitos milhões de euros, todos os anos!

Sem tempo a perder

Não poderia, a luta pelo salário avançar por esta via, aproveitando a já citada (e justa) disposição legal?

O problema é, precisamente, que muitas vezes, na relação trabalhador-patrão a parte fraca não tem como impor a aplicação da lei. O empregador tem a faca e o queijo na mão: desde os RH, aos advogados, passando pela pressão, o assédio ou a ameaça de despedimento.

Mas há aqui campo para a luta coletiva. Imaginemos que um sindicato (ou uma central?) elabora (mobilizando para isso os seus advogados) uma minuta geral que sirva aos trabalhadores para, «no termo do ano civil», como a lei prevê, reclamem esses valores não pagos. E que, numa campanha de esclarecimento nas redes e nos locais de trabalho, distribui milhares destas minutas a quem trabalha, sendo depois estas entregues, devidamente preenchidas, aos sindicatos, reclamando aí, cada trabalhador, que o tempo trabalhado para lá da hora lhe seja pago.

Imaginemos agora que, em vez de cada um entregar essa reclamação ao patrão expondo-se num confronto individual, os sindicatos o fazem. Num dia publicamente marcado, sindicalistas e trabalhadores que se mobilizassem fariam a entrega de milhares destas reclamações à porta das empresas, fazendo depois uma farta entrega também ao ACT. Tudo com alarido e barulho, convocando a comunicação social. Assim, já ficava difícil, aos patrões, ignorar.

Talvez este plano de luta hipotético tenha as suas falhas ― é possível. A luta pelo tempo perdido pode ser feita desta ou doutra forma. Mas é uma batalha a travar ― sem tempo a perder!

Manuel Afonso
Sobre o/a autor(a)

Manuel Afonso

Assistente editorial e ativista laboral e climático
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