Europa devia regressar à estaca zero para uma refundação democrática

30 de março 2014 - 0:02

João Lavinha explicou ao esquerda.net porque aceitou o convite do Bloco para ser o segundo candidato da lista às europeias e refere os temas que quer ver discutidos na campanha que se aproxima, para além da austeridade e do Tratado Orçamental "que esmagam os povos da periferia da UE".

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João Lavinha é o nº 2 das listas do Bloco às Europeias de 25 de maio de 2014

João Lavinha é investigador do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, onde lidera a Unidade de I&D do Departamento de Genética Humana. Já dirigiu o Instituto entre 2000 e 2004 e foi a partir de 2002 delegado nacional aos 6º e 7º Programas-Quadro de I&D da UE na área da Saúde. Fez parte entre 2005 e 2012 do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e atualmente integra o Conselho Nacional da Ciência e Teconologia. 

Aos 64 anos, este investigador especialista em genética humana, com dezenas de artigos publicados em revistas científicas internacionais, entendeu ser a altura certa para dar um contributo que vá para além da intervenção cívica que teve até agora. Por isso aceitou o convite para ser candidato independente nas listas do Bloco às eleições europeias. Se o resultado do Bloco se aproximar ao das europeias de 2009, João Lavinha será eleito eurodeputado.

Porque aceitou o desafio do Bloco para ser candidato a estas eleições europeias?

O que me fez aceitar este desafio que o Bloco me colocou foram essencialmente duas coisas: por um lado, a constatação daquilo a que já ouvi chamar catástrofe social que estamos a viver em Portugal. Assistimos a uma regressão civilizacional em muitos domínios da nossa vida coletiva, inclusivamente em coisas que considerávamos absolutamente básicas como o regime democrático. A continuarmos por este caminho, ele pode estar em perigo. Mas também por causa das regressões no plano social, económico e cultural. Este conjunto de retrocessos em relação ao que foi o processo da Revolução de Abril levaram-me a sair um pouco da rotina do meu trabalho e pensar que tinha chegado a altura de eu também dar uma contribuição neste plano, para além das que tenho dado ao longo de muitos anos no quadro de uma cidadania ativa de cariz associativo. 

A outra razão foi porque nunca como este ano as questões nacionais apareceram tão intimamente ligadas ao futuro da Europa. Embora o Parlamento Europeu seja um órgão que não tem um poder muito decisivo na condução da construção europeia, apesar de tudo é o órgão onde os representantes do povo estão presentes. E eu pensei que esta minha vontade de contribuir neste momento poderia ser mais eficaz numa instância europeia, mais até que no nosso país. 

Qual o tema que mais gostava de ver debatido nesta campanha?

Para mim é evidente que a questão central que se joga neste processo da construção europeia é a questão do défice democrático. Precisa-se de muito mais democracia na Europa. A Europa é uma construção não-democrática de países que individualmente têm regimes democráticos, mas a construção europeia deixa muito a desejar desse ponto de vista. Creio que deveríamos pôr aos eleitores a necessidade de se partir para uma refundação democrática da construção europeia. 

Esta ideia de refundação, de voltar à estaca zero e voltar a partir para uma nova oportunidade para o futuro, significa uma aposta naquilo que Boaventura Sousa Santos chama de "democracia de alta intensidade", que dê a oportunidade aos cidadãos de participarem a vários níveis, que do ponto de vista social atribua um papel central ao trabalho como pilar do Estado Social e que considere a economia como uma provisão das necessidades humanas e não como uma oportunidade de lucros privados. Ou seja, que ponha a economia ao serviço das pessoas. E que do ponto de vista cultural combine, nesta construção de muitos povos, as localidades ou especificidades locais com uma cidadania europeia. Ou seja, irmos progressivamente considerando-nos como membros de uma comunidade que ultrapassa os Estados, mas sem de forma alguma esbater ou não a dar a oportunidade a que as especificidades nacionais, regionais ou locais tenham também um lugar na construção europeia. 

Finalmente, um último traço que essa democracia de alta intensidade deveria ter do meu ponto de vista  era a questão da sustentabilidade do desenvolvimento. O desenvolvimento que a Europa tem vindo a traçar, se bem que relativamente a outras zonas do mundo seja um pouco mais avançado, é ainda muito insuficiente do meu ponto de vista. Em resumo, creio que o centro do debate para as eleições deveria ser mais democracia para a Europa, nos aspetos políticos, mas também social, económico, cultural e de sustentabilidade. 

Claro que não podemos evitar aquilo que está neste momento a esmagar os povos da periferia da União Europeia: a austeridade e o Tratado Orçamental, Esses temas são incontornáveis, mas para esses temas poderem ser abordados noutra perspetiva era importante que houvesse a tal refundação democrática da União Europeia.

Se for eleito eurodeputado, que áreas de intervenção gostaria de tratar no Parlamento Europeu?

Nos últimos dez anos, tive a oportunidade de integrar a delegação portuguesa aos 6º e 7º Programas-Quadro de Investigação e Desenvolvimento da UE, numa área da minha especialidade, as Ciências da Saúde. Embora não havendo uma política europeia de Saúde, há uma política europeia de Saúde Pública e o Parlamento Europeu intervém sobre ela. Dessa experiência de cerca de uma década nas instâncias onde se planeia e se financia a investigação a nível europeu, constatei que ainda há um défice de tradução dos resultados da investigação para o benefício social que se traduza em melhorias no funcionamento social em todos os níveis. 

Conheço melhor o domínio da saúde, mas também o do Ambiente, Transportes ou Agricultura e creio que a política científica da União Europeia deveria procurar valorizar os resultados traduzindo-os em políticas sectoriais. Não sei bem em que medida os atuais poderes do Parlamento Europeu permitirão uma intervenção específica neste domínio, mas tenho a certeza que haverá no lado das políticas sectoriais a necessidade da componente de conhecimento que só a investigação científica pode fornecer para a tomada de decisão nesses vários sectores. 

Sabemos que em grande medida, o atual programa-quadro da UE de investigação e desenvolvimento – o Horizonte 2020 – já está definido. De qualquer modo, mais do que saber quanto dinheiro é que a UE vai alocar à Ciência e quais os temas, que já foram estabelecidos, é preciso saber como se faz a ligação entre os resultados da atividade científica e das políticas sectoriais. Penso que aí poderei dar um contributo.

Que balanço faz da aplicação do memorando da troika na ciência feita em Portugal?

Como seria de esperar, o balanço não é nada diferente em relação ao que se faz em relação a outros setores da sociedade. Embora nominalmente o investimento em Ciência não tenha sofrido grandes cortes em termos de proporção dos fundos, a sua reorientação - menos dinheiro para recursos humanos e mais para projetos - não teve ainda nenhuma consequência positiva. Por outro lado, no que respeita aos recursos humanos – o principal capital de qualquer país – não temos tido capacidade de reter as pessoas em cuja formação investimos e que estavam muito mobilizadas para agora contribuir para o avanço do conhecimento nas várias áreas em que se especializaram. 

O êxodo de cientistas para outras paragens é uma realidade e as nossas instituições científicas debatem-se com falhas graves ao nível da manutenção da capacidade instalada que a década e meia de investimento persistente tinha permitido. Para mim é extremamente preocupante termos criado infraestruturas altamente sofisticadas e capazes de nos projetar para níveis de produção científica comparáveis aos dos países europeus mais avançados e essas infraestruturas estarem agora ameaçadas de rutura por falta de manutenção.  

25 abril