Dois filhos, uma máquina de lavar roupa

porSandra Cunha

05 de março 2014 - 13:24
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Só Pedro Passos Coelho para não entender que ser mãe ou pai implica a necessidade de assegurar que os filhos terão uma vida melhor que a sua. Só Pedro Passos Coelho para não perceber que não se fazem filhos com micro-ondas e máquinas de lavar roupa.

 

Quando se juntam, sabemos que dali não pode vir coisa boa. Passos Coelho e os comparsas laranjas tiveram mais uma das suas estapafúrdias ideias. Depois do referendo à coadoção e do sorteio de carros já nada espanta. Preocupados com a reduzida taxa de natalidade portuguesa, anunciaram no congresso do PSD que irá ser constituída uma comissão multidisciplinar para preparar um plano de ação que combata a fraca apetência dos portugueses para a procriação.

Estão preocupadíssimos porque no ano passado houve mais mortes que nascimentos. Nasceram apenas 82.538 crianças. Deverão estar também preocupados porque nos últimos três anos emigraram por ano mais portugueses do que nasceram crianças. E porque Portugal é atualmente o sexto país mais envelhecido do mundo. Estão preocupadíssimos com a sustentabilidade da Segurança Social, pois claro.

No espaço de quarenta anos, Portugal passou de país com a maior taxa de natalidade da Europa para aquele com a mais baixa taxa de natalidade. No ano de 2012, o índice sintético de fecundidade atingiu o valor recorde de 1,28 filhos por mulher. Se é certo que este índice tem vindo a descer continuamente nos últimos cinquenta anos, reflexo de uma sociedade moderna onde a criança deixa de ter uma função instrumental e passa a estar no centro dos afetos e é, consequentemente, merecedora de proteção e cuidados especiais, não é menos certo que se verificou uma queda acentuada relativamente aos anos de 2010 e 2011, que tinham registado índices de 1,39 e 1,34 filhos por mulher, respetivamente.

Qualquer um compreende que as crises económicas e a austeridade agravada são dos fatores mais gravosos para a fecundidade, mas nada nos leva a crer que desta recém criada comissão saia algo diferente da célebre e inútil ideia do cheque bebé criada pelo governo de Sócrates e que nunca chegou a ver a luz do dia. Toma lá 200 euros e vai ali parir um filho. Assunto resolvido.

Só a sobranceria de quem não perde o sono com as dificuldades do seu povo pode achar que uma mão cheia de medidas avulsas vão convencer os portugueses a ter mais filhos quando, tantas vezes, nem conseguem encher o estômago a um.

Não será nenhum cheque-bebé ou a promoção do trabalho a tempo parcial, que apenas penalizará as mulheres prejudicando-as em termos de progressão na carreira e acentuando ainda mais o fosso salarial entre géneros, que fará dos portugueses sérios concorrentes da coelhada. Mas talvez saia desta comissão um qualquer concurso ao estilo do sorteio dos carros. Quem conseguir ter dois filhos num ano ganha uma máquina de lavar roupa de eficiência energética A com capacidade para 7 kg. Os que tiverem gémeos ganham de bónus um micro-ondas com potência de 1200 watts.

Só quem vive mesmo muito longe da realidade e centrado no seu umbigo não reconhece que o que impede os portugueses de terem filhos é o empobrecimento generalizado a que foram votados, é o desemprego, a precariedade, a desesperança, é o convite aos jovens em idade fértil para saíram da sua zona de conforto e emigrarem, é o corte do abono de família a meio milhão de crianças nos últimos três anos, o corte do RSI, a degradação das condições de vida.

Pedro Passos Coelho e o seu séquito de agiotas que desçam à rua e perguntem a qualquer jovem adulto porque não tem filhos. Dir-lhe-ão que lhes falta emprego, expectativas, segurança, que lhes falta salários dignos, que lhes falta escola pública, daquela a sério onde não se gasta metade de um salário mínimo por cada filho no início do ano escolar. Dir-lhe-ão que lhes falta universidades sem propinas. Que lhes falta um Serviço Nacional de Saúde eficiente que lhes assegure, em caso de necessidade, o tratamento adequado dos filhos. Dir-lhe-ão que lhes falta sobretudo a confiança de que não deixarão os filhos morrer à fome.

Só Pedro Passos Coelho para não entender que ser mãe ou pai implica a necessidade de assegurar que os filhos terão uma vida melhor que a sua. Só Pedro Passos Coelho para não perceber que não se fazem filhos com micro-ondas e máquinas de lavar roupa.

Sandra Cunha
Sobre o/a autor(a)

Sandra Cunha

Feminista e ativista. Socióloga.
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