Chegamos ao fundo do caminho? Nem pense nisso

porFrancisco Louçã

22 de setembro 2015 - 15:23
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Até hoje, a campanha eleitoral foi dominada pelo tema da segurança social. Ainda bem. Está-se a discutir um tema essencial que diz respeito a todos e a todas. O tema que falta, então, é o emprego. Examinarei aqui a proposta do PS, e depois discutirei a da direita.

Até hoje, a campanha eleitoral foi dominada pelo tema da segurança social. Ainda bem. Está-se a discutir um tema essencial que diz respeito a todos e a todas. E essa abertura é a única forma de retirar poder aos especialistas, que são uma república independente (recentemente, candidatos do PS e governantes da direita formaram um clube de reflexão sobre o futuro da segurança social que passou razoavelmente despercebido).

O tema que falta, então, é o emprego. Examinarei hoje a proposta do PS, e depois discutirei a da direita. Começo então por lembrar os três momentos definidores mais recentes, deixando de lado a criação dos contratos a prazo, a promoção dos recibos verdes ou das empresas de trabalho temporário, tudo glórias de governos do PS ao longo dos tempos. Como se verificará, o caminho do PS sobre a questão do emprego não se resume a um incidente com um cartaz e uma história mal contada. Tem uma ideia firme e propostas concretas.

1. A proposta de Centeno e do FMI

Mário Centeno, chefe do grupo de economistas que apresentou o cenário para o programa do PS e putativo candidato a ministro, escreveu em 2012 um livro (“O Trabalho, Uma Visão de Mercado”) defendendo as ideias do FMI para o “mercado de trabalho”, ou seja, para as regras legais definidoras das condições de emprego.

Nesse livro critica “a legislação do mercado de trabalho português (que) promoveu a sua segmentação” (p.15) e “contribuiu para que se formasse em Portugal o mais desigual e menos eficiente mercado de trabalho do continente” (p.18). Acrescenta que a segmentação “introduz restrições na eficiente afetação dos trabalhadores aos postos de trabalho” (p.24), o que resulta de “barreiras que a regulamentação existente levanta à progressão laboral de alguns grupos de trabalhadores” (p. 38).

Continua Mário Centeno: “as dificuldades dos jovens no mercado decorrem da legislação de proteção ao emprego” (p.69), pelo que, contrariando a “ilusão protecionista”, será necessária uma reforma que “reduza os custos do despedimento (monetários e processuais), avance no sentido de uniformizar as diferentes formas contratuais e universalize o seguro de desemprego” (p.89). Em consequência, apresenta a sua solução: propõe um “contrato único” com “períodos experimentais longos” e “mecanismos de pré-aviso de despedimento que facilitem a procura de um novo emprego” (p.18). Ou seja, o fim dos contratos como os conhecemos e a redução de todas as regras de emprego à mesma norma: o patrão pode despedir o trabalhador quando assim lhe convier. Estes mecanismo “facilita a procura de um novo emprego”, afirma Centeno.

Esta é a doutrina e a proposta que também o FMI tem sustentado.

Assinalo que António Costa, no debate nas rádios, fez questão de anunciar que não concordava com esta proposta de “contrato único” de Mário Centeno.

2. O “despedimento conciliatório” e o “fim dos contratos de trabalho”

Em função dessa resistência, a proposta de Centeno não vingou completamente no programa do PS. Foi alcançado um acordo em torno de uma posição intermédia – ao que se diz com Vieira da Silva – e o programa propõe um menu de transformações da relação de trabalho que incluem a redução definitiva da contribuição patronal para a segurança social (com a contrapartida de alguns novos impostos e portanto de uma dependência acentuada do orçamento de Estado), uma redução provisória da parte da TSU paga pelo trabalhador (com redução futura das suas pensões) e uma nova forma de despedimento coletivo, permitindo acelerar o afastamento dos trabalhadore

Ascenso Simões, ao tempo diretor da campanha do PS (demitiu-se entretanto em função da polémica dos cartazes sobre o emprego), criticou este programa por ser demasiado moderado e castigou o carácter tímido das propostas de Centeno, sugerindo em alternativa que o PS passasse a defender o “fim dos contratos de trabalho”. É sempre curioso ver um diretor de campanha criticar o programa da sua campanha.

Numa entrevista aqui no PÚBLICO, Mário Centeno defendeu com cuidado o compromisso que aceitou para o programa do PS, criticando os contratos a prazo (acusando-os de serem um despedimento com prazo certo, o que é muitas vezes o caso, mesmo que isto inocente os próprios governos do PS da promoção deste modo de contrato a prazo) e propondo em contrapartida a flexibilização do despedimento. Mas esse é mesmo o ponto essencial desta história.

Na minha opinião, é aqui que está a chave da proposta do PS e o seu carácter liberal. Como os despedimentos são banalmente são impostos a trabalhadores que não os contestam, por receio de perdas suplementares e de um arrastamento na justiça, esta aceleração e simplificação do despedimento coletivo fica muito próximo do que pretendiam as autoridades patronais e as instituições internacionais. Ficarão com o que querem, contornando a proibição constitucional do despedimento sem justa causa, visto que as dificuldades práticas para despedir qualquer trabalhador por qualquer motivos passam a ser irrelevantes.

Como se lê na página 31 do “Uma Década para Portugal”, esse “regime conciliatório” permitirá o despedimento “englobando todos os motivos de ordem económica”. Ou seja, qualquer motivo económico serve.

Acresce que o trabalhador receberá uma indemnização em valor inferior à que vigorava antes do governo Passos-Portas. Despedimento por qualquer motivo económico e a preço mais baixo, o que é que o patronato pode pedir mais?

Mas a pergunta que me incomoda mais é esta: esta proposta é uma solução para que problema? Não se consegue perceber. É difícil despedir em Portugal? Há 700 mil desempregados sem subsídio, será que apoiá-los e procurar criar emprego não é a prioridade? Tornar mais rápido o despedimento, para quê exactamente? Porque agora demora muito? É constrangedor assistir a esta evolução ideológica, porque só se trata de ideologia desempregatícia.

3. Emprego, 207mil

Não surpreende portanto que este programa suscite entusiasmo entre a direita bastante extremista, que quer “abraçar” Mário Centeno.

A direita tem razão em se precipitar para esse estreito abraço. O fundamento desta proposta do PS é a ideia – que foi energicamente combatida mesmo nos partidos socialistas até ao ascenso do Blairismo – segundo a qual as soluções para uma crise social são alterações nas regras que favorecem as empresas, ou que é desse modo que se fazem os ajustamentos de que a economia precisa. Dito no jargão economista, para os problemas macro só resultam as soluções micro. Ora, esta ideologia só abre campo a alternativas que reforçam a acumulação de capital e portanto a desproteção do trabalhador.

Essa regra conduz diretamente à faceta mais inexplicada do programa do PS, o seu pensamento mágico, que não é explicada nem na entrevista de Centeno nem em nenhum documento do PS: como é que política do novo governo (incluindo a facilitação dos despedimentos) vai criar 207 mil empregos (na primeira versão eram 300 mil, ou reduzir o desemprego de 13 para 7%). De facto, a resposta é só esta: reduzindo os custos das empresas com o trabalho (baixar a TSU) e facilitando os despedimentos, o PS espera criar incentivos suficientes para relançar o investimento. Porque investimento público é que não pode ser (António Costa, SIC, 17 agosto 2015), são precisas as tais soluções micro para problemas macro – e as soluções micro são no “mercado de trabalho”, ou seja, nos poderes das empresas.

Só que isto se torna pouco credível. São as empresas a criar esse emprego, porque nada de aumentar o investimento público, mas o modelo matemático já sabe como vai ser e, tal como o planeamento quinquenal soviético, o PS desenha o futuro com uma certeza que só pode impressionar: em 2019 vamos criar 466 empregos no apoio a idosos carenciados e emigrantes; em 2018 criamos 2124 empregos através dos benefícios de IRC nas zonas de fronteira e na recuperação de rios; em 2017 serão 549 empregos em unidades de saúde, cuidados continuados, pré-escolar e escola a tempo inteiro, é o que escreve o PS. Será que os planeadores do PS acreditam mesmo neste desígnio cósmico?

Conclusão: o fundo não é aqui

Ao longo da sua história, o PS português já fez muito pela liberalização do mercado de trabalho. Mas o que nunca nos tinha dito é que a chave da sua política se baseia na flexibilização da vida na empresa em benefício de uma das partes, nomeadamente do poder de despedir, e que a recuperação da economia depende dessa transformação facilitando os despedimentos.

Uma coisa lhe posso garantir, caro leitor ou leitora, considerando a experiência: isto ainda tem muito por onde piorar.

Artigo publicado em blogues.publico.pt em 18 de setembro de 2015

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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