Em todas as suas dimensões, mostrou a muitos e a muitas mais (só o primeiro dia contou com mais gente do que o somatório de toda a edição anterior), que é possível haver cinema no Porto. E que o cinema possibilita intervenção e concretiza resistência, abre possibilidades à política, no e na Batalha.
Cheio de passado e cheio de presente, o Desobedoc foi há mais de uma semana – mas é hoje, e promete-se amanhã. O ponto de situação… para já!
1ª Vaga: Fomos no Batalha!
Nenhuma ocupação se resume num ato. Toda a ocupação consequente se desdobra em vários atos, em vagas plurais e em etapas diversas. E o Desobedoc, consequente desde a sua primeira edição, teve vários momentos de ocupação, entre a mais meditada das ações e a mais espontânea das contingências. A primeira vaga de ocupação está na deslocação do Desobedoc para o Cinema Batalha, esse, cujo primeiro andar abre para a praça e se deixa invadir pela mesma praça, entre o planeamento e o acaso, entre a espontaneidade da rua e as razões que dão razão à rua.
Reabrimos o Batalha. Como escreveu o José Soeiro, na abertura do Jornal do Desobedoc, sabíamos que “reabrir este cinema por três dias é um gesto concreto de resistência e de solidariedade”. E três dias concretizaram um trabalho militante de meses, entre seleção e pedidos de autorização de filmes, tradução e legendagem, elaboração de folhas de sala, impressão e distribuição de jornais, formação de equipas de voluntários. Houve a preparação do cinema, a gestão logística delicada ao lidar com a degradação de um equipamento monumental, entregue ao abandono e ao silêncio.
2ª vaga: quebrar silêncios
E a segunda vaga de ocupação foi a do barulho. Da mistura de vozes que se encontram no cinema e com o cinema. Das frases que comentam os filmes e que comentam o comentário dos filmes, dos aplausos que partilhamos com espectadores/as ou que ouvimos, quase perdidos, quando passamos entre uma sala e outra. O som das palavras que, mesmo sem ver filmes, retomam as memórias do Batalha e entram só para estarem ali, dizendo com olhos brilhantes que já ali não entram há anos, entre a memória cinéfila e, eventualmente, a evocação de um beijo transgressor revivido – sortilégio digno de filme! – num festival de cinema desobediente. Em suma, a 2ª vaga de ocupação esteve na voz diversa de um festival com tanta gente e com tanta cidade, que transforma o Batalha num bastião ululante de desobediência: à lógica de mercado, ao fatalismo do abandono, à cidade a preto e branco de quem compra e de quem vende. O Batalha, no Desobedoc, documenta do avesso a cidade gentrificada ao encher-se de cinema– e é tão bom encher o cinema de gente como encher de gente o cinema!
3ª vaga: tantos filmes numa praça!
Com sarcasmo quanto baste, Jorge de Sena disse um dia que “o cinema é, no mais alto grau, uma forma de comunicação inconveniente”. Deslocando o foco e o contexto, concordamos com a sentença. Esta inconveniência erige, no interior e no exterior da tela, uma insurreição criadora com memória, ora homenageando, implícita e explicitamente, a aliança entre cinefilia e intervenção na resistência ao Estado Novo, ora recordando o quanto essa insurreição se requer, no contexto de uma sociedade apodrecida. O racismo, a ciganofobia, a violência fronteiriça de uma Europa subjugada ao neocolonialismo capitalista, passando pela homo/lesbo/transfobia, pela habitação, pelo trabalho com direitos… desfilam num convite à construção de alternativas, de formas outras de organização coletiva, de expressões pluralizadas que o próprio Desobedoc abre.
Sabendo que nunca o cinema foi apenas cinema, o Desobedoc esteve nos seus corredores, com livros de editoras independentes, com bancas de espaços insurgentes, com festas programadas de portas abertas, com instalações artísticas que reabitaram em intensidade e pluralidade a desolação do dia anterior, tornando possível e abrindo possíveis. E porque, como diz Sérgio Godinho, desobedecendo ao adágio popular, “de pequenino se torce o destino”, dedicamos o Domingo de manhã às crianças, num desobedoquinho carregado de futuro.
O Desobedoc esteve no Batalha e tem estado na batalha. Com o vigor de sempre e com mais adesão do que nunca, o Desobedoc é, cada vez mais, uma porta aberta e uma casa habitada: gente com cinema; cinema com gente.
E porque toda a ocupação gera ocupação, o Desobedoc terá uma extensão em Torres Vedras, já no próximo fim-de-semana. Que se repercuta, lá como cá, em todo o lado. De vaga em vaga, sem dispensar nada.
Artigo de Hugo Monteiro e Ada Pereira da Silva, para esquerda.net